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malkovich reloaded

+Cavalheiro

A garçonete vem a minha mesa com o chá tailandês gelado, eu sorrio de volta, ela diz: "Malkovich", e eu respondo "Malkovich". Ao notar que saiu "Malkovich" em vez de "obrigado", repito "Malkovich". Corro ao banheiro deste restaurante em Beverly Hills [Cheesecake Factory], jogo água na cara, olho no espelho e grito em desespero "Malkovich" – eu sou Malkovich… Acordo com aqueles movimentos vergonhosos de cabeça quando dormimos sentados no cinema, então repito para o outro lado, e para frente, disfarçando, como se tivesse exercitando o pescoço.
Estamos em um cinema em Brentwood, poucas quadras da UCLA, e a sessão recém acabou – o moderador está dando instruções à classe enquanto alguém foi buscar o diretor. Esta é uma das duas únicas entrevistas que John Malkovich vai dar nos EUA. Também é a primeira pré-estréia de The Dancer Upstairs [ainda sem título em português], e só haverá duas. O filme é mais ou menos inspirado nos acontecimentos revolucionários de algum país latino nos anos 80 – poderia até ser o Brasil. Em poucos minutos, porém, reconhecemos as práticas do famoso Sendero Luminoso. John nos conta de sua fascinação pelo Peru e de suas constantes visitas a esse país, de onde baseou muitas cenas.
O espanhol Javier Bardem, em sua melhor performance desde Antes do Anoitecer, é o investigador Augustin Rejas, que persegue o misterioso Ezequiel, líder de uma facção revolucionária indígena. Mas a estória principal é o conflito interno de Augustin: um policial em uma ditadura. Este drama é cristalizado em sua atração por Yolanda [a linda Laura Morante], a professora de ballet de sua filha. A beleza de Dancer reside no fato de que, em duas horas, ator e diretor nos conduzem ao conflito bem mais embaixo, mais real, algo que demora uma vida inteira para nos darmos conta: às vezes [e Hitchcock já mostrava isso] o inimigo somos nos mesmos.
Nos anos 80 eu fazia parte de um grupo revolucionário trotskista no Brasil, por isso naveguei no enredo como se estivesse surfando em ondas familiares – a mesma sensação estranha de me sentir em casa quando entro em prisões e hospitais psiquiátricos, aquele cheirinho de crise, de caos, de loucura ao qual me acostumei. Verdes anos ao qual refiro por "aqueles bons tempos da ditadura" – quando o inimigo era facilmente almejado.
Em um passo sonâmbulo, boné de beisebol e tênis, John sobe ao palco. Eu me levanto e sento um pouco mais perto para comparar este Malkovich com o do filme Being John Malkovich, de Spike Jonze. Surpreso, noto poucas diferenças. Ok, nenhuma! Primeiro penso que está brincando, se auto-caricaturizando, mas logo percebo que ele é assim mesmo! A cada pergunta que fazemos, suspira, toma um gole d’água, esfrega os olhos e olha para o chão. Então responde minimamente, geralmente com "sim" ou "não". Um velhinho do jornal de Beverly Hills reclama que não entendeu a fita, e diz "quem sabe você pode explicar a mensagem". Nessa pergunta ele demora mais, fixando o chão por uns 45 segundos. Sorrindo, responde: "não tem". "O quê?" Insiste o velho, ao qual Malkovich responde: "Desculpa [15 segundos olhando para o teto], mas não tem, não pensei em passar nenhuma mensagem... Se está buscando uma lição política, de vida, filosófica, procure em outro lugar!"
Esta é a estréia de Malkovich como diretor. Por que um assunto tão polêmico? Por que atores espanhóis? "Sempre quis trabalhar com Bardem, acho ele incrível. Sou fascinado pela América do Sul." Então, lhe faço minha única pergunta: "Dificuldades com The Dancer Upstairs aqui nos EUA? Ainda mais depois da onda de terrorismo?" Notando meu sotaque, ele sorri mais largo, parecendo chapado, e sem pensar diz "não". Alguns goles d’água depois, olha para o teto, ri. Agora sim, após segundos de silêncio, como se estivesse conversando com vozes internas, nos conta: "Problema foi na Inglaterra, na cena da galinha…" [um dos atentados do filme e uma das práticas do Sendero é jogar galinhas com explosivos correndo no meio de multidões]. "… você pensaria que os brits se ofenderiam com imagens de crianças morrendo, sangrando, torturas etc… mas não! Foi a Sociedade Inglesa Protetora dos Animais que atrasou a distribuição por causa da galinha... ah [mais risos e conversas internas]… eles disseram que notaram sinais de ansiedade e frustração nela! Eu lhes garanti que ela foi bem tratada, que já veio com problemas mentais, e que o trabalho, na verdade, foi terapêutico para a ave. No final das filmagens ela parecia bem mais relaxada – considerando tudo… você sabe que a vida de ator pode ser estressante, até a de galinhas atrizes!"
A última pergunta vem de um jovem estudante de cinema que, como eu, meio fora-de-lugar, olha ao redor antes de falar, como se estivesse pedindo permissão ao mesmo tempo em que sorri do tipo não-sei-como-me-deixaram-entrar-aqui-mas-aqui-estou: "Being John Malkovich transformou você em um ícone, o que achou disso?" Para esta resposta ele demorou recorde, quase um minuto de risos, olhos para o chão, para o teto, como se não tivesse ouvido. A gente se entreolha, e pouco depois do jovem se levantar para perguntar de novo, ele responde: "Nunca entendi porque alguém se interessaria a fazer um filme sobre mim… vocês agora me conhecem um pouco e eu sou sempre assim, entre narcoléptico e chapado, super chato e slow motion [sua voz se torna ainda mais vagarosa e monótona]. Se ouvisse a mim mesmo pegaria no sono. Primeiro eu disse, ‘não, de jeito nenhum, que idéia estúpida’, mas Spike não desistiu, ficou insistindo muito. Até hoje não compreendo, acho que sou a pessoa mais chata do mundo." Talvez. Mas para sua estréia como diretor ele arriscou muito e acertou na mosca, ou na galinha.
Minutos depois, procuro minha caminhonete na noite escura de Los Angeles. Sempre esqueço onde estaciono, flashbacks de lembranças de tumultos entre a polícia e o povo de Porto Alegre, gente apanhando na "Esquina Democrática". Quando finalmente encontro meu carro, olho o horizonte poluído na Califórnia do Sul e suspiro: "Malkovich, Malkovich". A luta continua?*Marcelo Cavalheiro é psicoterapeuta e diretor de um centro psiquiátrico em Los Angeles. Vive em exílio voluntário nos EUA desde 1990. Nascido e criado em Porto Alegre, onde foi processado por desobediência civil, tocou em bandas, botou radio pirata no ar e trabalhou com terapeuta infantil. Cavalheiro, cheio de tatuagens, metro e oitenta e tanto, 120 quilos, careca, pode ser lido em revistas e jornais no Brasil, EUA e Espanha

(também publicada na revista Simples até o fechamento dessa edição, a data de estréia do filme no Brasil ainda não estava prevista)